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CARLOS CARDOSO é poeta, natural do Rio de Janeiro,
nascido em 30 de dezembro de 1973. Possui formação em engenharia.
Sua estreia na literatura ocorreu em 2004, com o livro de poemas Sol Descalço (Editora 7Letras), cujo texto de apresentação foi assinado pelo poeta
Afonso Henriques Neto.
Em 2005, publicou Dedos Finos e Mãos Transparentes (Editora 7Letras), recebendo críticas positivas, entre elas, do poeta Carlito Azevedo
e do escritor Joel Rufino dos Santos.
Seu mais recente livro de poemas, Na Pureza do Sacrilégio (Ateliê Editorial, 2017), teve o prefácio assinado pelo crítico literário Silviano Santiago, que aproximou o poeta a Fernando Pessoa e Octavio Paz, e a orelha escrita pelo acadêmico Antonio Cicero. A obra contou com a parceria da artista plástica Lena Bergstein, que produziu pinturas inéditas inspiradas nos poemas.
A produção literária de Carlos Cardoso é marcada pela escrita singular e dicção própria que torna a sua obra independente e única, como analisou o crítico Manuel da Costa Pinto. O poeta é apontado como destaque entre os escritores da sua geração e “uma nova paisagem poética no país”, conforme ressaltou o jornalista especializado em literatura Paulo Werneck.
audio book
2005
2017
2004
antonio cicero e carlos cardoso – 1'49
1
a sensibilidade poética de c. cardoso – 2'02
manuel da costa pinto – 4’31
2
[nota]
qual das guerras...
brincando
sagrada fosse a fome
arquitexto
o caminho dos cavalos
SOL DESCALÇO
Em seu livro de estreia, o poeta Carlos Cardoso dialoga diretamente com a produção do surrealismo na literatura brasileira, que tem Murilo Mendes e Jorge de Lima como maiores representantes. Na busca por sua voz, Carlos Cardoso apresenta uma expressão poética autêntica, como afirma Afonso Henriques Neto no texto de apresentação. Seus versos, ao longo do percurso, indicam a construção de um corpus poético introspectivo, com instantes luminosos, que conduzem o leitor a ampliar o olhar fora do cotidiano ordinário, focando a atenção para além do lugar comum. Um trabalho marcado por versos reflexivos, através da conversa intertextual com pares: Gilberto Mendonça Teles e Eucanaã Ferraz, poetas cujo o cuidado com a linguagem é condição primordial para construção dos versos.
Rio de Janeiro: 7Letras, 2004
ISBN 85-7577-139-6
60 páginas
ARQUITEXTO
para Eucanaã Ferraz
Corações crispados,
paixões acampadas nos olhos
– segredos!?
não demonstre nenhuma lágrima,
todo desejo é oculto enquanto vale.
“Tudo e nele nada se contém”.
Ouso, imploro aos deuses
que não rimem as palavras,
afinal o silêncio ecoa,
e os verbos elocubrados no espaço
são mais que metáforas,
são passos,
em que o poeta vai além dos laços.
Pô, esses alvéolos de arquitextura,
tão úmida e forte ainda ressoam.
E não chore amigo,
a vida é a tenra carne da morte.
arquitexto
BRINCANDO
para Gilberto Mendonça Teles
1.
Talvez as palavras me fujam
e eu me disfarce de poeta,
o silêncio é minha casa
e a construo em linha reta.
2.
Talvez as palavras me fujam
e eu me disfarce, cortejante,
o silêncio é uma pedra
e a chamo diamante.
3.
Talvez as palavras me fujam
e eu me disfarce de criança,
o silêncio é meu pecado
e meu verso a esperança.
4.
Talvez as palavras me fujam
e eu me disfarce, assim, amando.
o silêncio é minha arte,
e o criei assim, brincando.
o caminho dos cavalos
O CAMINHO DOS CAVALOS
I
com os mapas do informe rastreei a cidade dos mortos
ossos e paraísos e gesso em estilhaços
oravam ao solitário vôo do ganso
a morte os demônios e os anjos
habitavam os estábulos sagrados,
casa sobre pedra era segredo
pocilga rosnando favos guerra faísca
tudo era desordem nada era poema
palavras ossos paredes sob a chuva de sangue
e a cidade dos mortos era pedra pedra
ossos cânticos talvez fossem
o príncipe de gelo a tangenciar a morte
nos caminhos dos cavalos,
rochosos ocultos perdidos nos favos
II
a dor a morte e os cogumelos de areia
esculpiram o sebo e o sal nos olhos da sereia
o sol e o mar sobre as planícies de Israel
cantaram aos pés do chifre do unicórnio perdido
Adão e Abraão e as vértebras de Jacó
deram um nó na garganta da efêmera voz em desalinho
baleias vertigens e fêmeas em seus ninhos
pegadas da misericórdia de um cego poeta
que nasce a cada ferida e morre ferido
em rochas gesso e ossos verdes de luz
III
O fel de Cristo e os porões do inferno
feitos a patadas de gente e esferas de fogo
doce farpa no cérebro ardente da palavra túmulo
caminhos descobertos prodígios meninos
pó destinado a Cristo, raposa copiosa a engolir a carne
áspera garganta a reinventar o inferno
velhas agonias no cenário cambiante do pássaro ruidoso
fluida gestação de tudo e tudo é nada
cuspida de vinagre sobre pedra palavras
vestido branco da metáfora absurda
folhas ferro fogo longos olhos ébrios
espelhos do túmulo cavado pelas patas do poeta
ovos celestes cálices feixes do mito, minto
oco vento, memória áspera, raiz do pensamento
IV
confundi os cotovelos mas não o coração
repousa no caminho dos cavalos
o submerso domínio da palavra morte
serpentes mordidas, diabos feridos,
cidade dos mortos a ressurgir na sombra do medo
dos cegos olhos que amanhã
tocarão as órbitas sagradas da tempestade
raiz da unha crânio róseo do chumbo
êxodo lírio em sol e mel
Vênus rastreada além dos jardins d’alma
espinhos recurvados jamais reconhecidos
como pedra palavras coices no caminho do fogo
espectro imaculado nos caminhos dos cavalos,
rochosos ocultos perdidos nos favos
QUAL DAS GUERRAS QUE RESSUREIÇÃO?
quão dourado é este sol
terra firme mar intenso
qual das guerras que ressurreição?
há de fecundar do meu invento.
oh, alumiar a Terra Santa
não é cria de pouco vento
qual das guerras qual razão?
surgirá do homem vão,
e lhe dará contentamento
qual das guerras...
sagrada fosse a fome
SAGRADA FOSSE A FOME
sarcástico na garganta do apego
um gigante branco chamado fome ressoa abrasador
ver criança pescoço da pele comer coxinhas de restos humanos
e putas castas a orar nas catedrais do voto
é farejar o absurdo na calçada do abismo
tão negro como o carvão só a mandíbula doce
sagradas primaveras por onde navego
cogumelo a só no escuro, criança criança
cidades demiurgas suplícios infindáveis
selvagens sacerdotes na raiz da Terra Fome
sarcástico é o senhor
sarcástico é o senhor
correio de esmolas, crianças famintas
em meu quarto esguio salmo túmulo (grite)
coisa muda ferradura sem curva
trêmula a voz da fome grasna
o efeito do feto morto na pança da mãe
cavalos e anjos em prantos
jovens príncipes, criança criança
fogo puro a alimentar a razão (grite)
sarcástico é o senhor
sarcástico é o senhor
o poeta e seu poema
esculpir a lua a nanquim
cada osso
o bonde do silêncio
a quem interessar possa
DEDOS FINOS E MÃOS TRANSPARENTES
O segundo livro de poemas do poeta Carlos Cardoso é uma confirmação de seu ofício na literatura brasileira através de um olhar sensível ao cotidiano e a produção literária contemporânea. “A beleza alucinatória de seus achados poéticos” – como destacou Carlito Azevedo a respeito da originalidade da poética de Carlos Cardoso em sua estreia – abre espaço para imagens mais delicadas, sem perder “a fúria motriz das imagens alucinadas”. O poeta volta a atenção para o cuidado com os versos, trabalhando a sutileza da escolha de cada palavra, aliada a ousadia de seguir adiante: “vá à ponta de um abismo, / crie coragem, respire fundo, e dê um salto”. É, justamente, a coragem de dar um salto em sua própria linguagem que o poeta busca neste livro, para abrir novas janelas em sua trajetória.
Rio de Janeiro: 7Letras, 2005
ISBN 85-7577-220-1
124 páginas
A QUEM INTERESSAR POSSA
Por entre lábios de nome todo amor
pinto palavras que se afiguram no incerto,
como labirintos que desaguam no deserto
e lâminas que assassinam o sempre certo.
O infinito é traçado a dedo e tinta,
como borboletas bailando sob nuvens,
e beija-flores chamando todo amor.
Ergo no peito a história de uma chama,
como o erguer de uma estátua que proclama.
Cada passo de um amor que arde,
queima, estraçalha, mas não ama.
CADA OSSO
Quando nossos corpos fundirem-se,
cada osso se desintegrará,
o gozo irá surgir aos poucos,
até que nossas almas se toquem,
meus olhos não chorarão prazer,
meu corpo não soluçará dor,
mas reagirá forte,
a qualquer tentativa de cura.
ESCULPIR A LUA A NANQUIM
Uma maçã com dez pecados,
a primeira mordida quem Dara?
Os mares, os raios, as estrelas.
Eu?
Mesclar o azul com o amarelo,
e nos dias de prazer cantarolar.
Rima que rima casa sol e mel.
Desenhar a lua, esculpi-la nua sobre o papel.
O BONDE DO SILÊNCIO
Já é noite e o bonde do silêncio
permanece intacto.
Nas ruas as pessoas observam os
pássaros a sobrevoarem as
correntezas.
E tudo permanece intacto.
Os amantes, os Deuses, as estátuas.
Só a poesia perambula.
Acaso os versos caminham ágeis e
desapercebidos.
E tudo permanece intacto.
O POETA E SEU POEMA
Vigas e paredes relutam em moldar-se,
Hermética paisagem de pedra areia e cimento.
Hipócrita o poeta xinga sintaxes, chuta as palavras,
E crava estacas profundas na ânsia de tocar o intangível.
Soberbo ele rende-se, dúbio e orgulhoso do nada.
NA PUREZA DO SACRILÉGIO
Depois de mais de dez anos, Carlos Cardoso volta à poesia com Na Pureza do Sacrilégio. O livro chega com a chancela de textos elogiosos de Antonio Cicero e do crítico Silviano Santiago.
“A escrita poética desnuda a pureza pelo sacrilégio para purificá-la ainda mais; desnuda o sacrilégio pela pureza para conspurcá-lo ainda mais”, escreve Santiago, que aproxima Carlos Cardoso a Fernando Pessoa, Octavio Paz e João Cabral de Melo Neto para apresenta-lo ao leitor.
O crítico apoia-se nas teorias do linguista russo Roman Jakobson para apontar o oximoro – aliança de palavras aparentemente contraditórias, que em vez de excluírem-se, complementam-se – como uma das chaves de leitura da obra. “O poema perambula, mas tudo permanece intacto – eis a lição de poesia”, escreve.
Além do prefácio de Silviano Santiago, o livro tem a orelha assinada por Antonio Cicero, que aponta com precisão “uma das grandes qualidades deste livro é que nele se encontram diversos poemas que oferecem ao leitor experiências originais, intensas e verdadeiras”.
O livro também é construído em uma atmosfera em que a poesia e as imagens se comunicam de forma harmônica, composto por vários quadros produzidos pela artista plástica Lena Bergstein inspirados nos poemas.
Sem dúvida, Na Pureza do Sacrilégio, de Carlos Cardoso, é um livro FORTE que apresenta ao leitor muitos motivos para refletir sobre os vários temas escritos ou sobre a vida que é o tema principal.
São Paulo: Ateliê Editorial, 2017
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camaleão
ventania
eu serei noite e serei dia
o poema, o começo
CAMALEÃO
Como um camaleão rastejo pelo
silêncio do meu quarto.
É poesia o encontro das paredes?
São ópio as estrelas aplumadas em
cada esquina do meu ego?
Ou será benevolente a lágrima que escorre por
minh’alma quando brado louco por felicidade?
Os arredores repletos de melancolia
ainda se refazem do gelo.
A ausência de um ombro, de um
corpo catatônico que seja,
faz-me lembrar o quanto era bom
o diálogo com os meus olhos.
Tocar a escuridão quando a voz do
desespero insistia no apego.
Mozart me enlaça com um fio de
náilon na garganta.
São as trevas rodeadas de luzes
intangíveis,
metáfora do abominável descaso
público a um quase morto.
Ninguém, nem mesmo a solidão, tem
mãos assim tão pequenas.
EU SEREI NOITE E SEREI DIA
Tenho uma outra face
que não é a rebeldia do exílio,
conto com a morte
e uma palavra de alívio
para quando o sermão de Maria
ocultar o sublime sonho
do unicórnio perdido,
saberei que o tempo
é apenas uma gota d’água
a beber o saber etéreo
da fugaz sabedoria,
sempre que as coisas
forem tristes
e o rio guardar em si,
o ser
por onde o ser não navega,
eu serei noite e serei dia,
e serei dia e serei noite.
NÃO MAIS ESTRANHO QUE ISTO
Não consigo ver o que me é dito.
São janelas abertas trazendo o vento
que aporta em qualquer porto.
E você ainda perambula em busca
do que não lhe pertence.
E por vezes retornas,
ao que tanto procuras,
e tão perto está.
Deve ser essa ostra
fingindo-se de borboleta.
Com essa máscara de inconstância
que você veste a qualquer preço.
E se esvai, e pronto, é o começo.
Retornas de asas abertas
a exalar paixão ao sol do meio sol.
Ainda ontem a resplandescência dos
seus olhos
cintilou o sono sufocante do
querer e não querer,
ouço passos a caminho da felicidade,
e ouso soprar as incertezas que
pairam nos porquês.
São essas figuras do passado
que volta e meia invadem o presente.
E em um alívio de viverem
acorrentadas,
respiram o perfume de sua essência.
E eu continuo a não saber
o caminho da solidão dos seus braços.
o poema, o começo
O POEMA, O COMEÇO
Indago, por onde iniciar essa resenha.
De dentro para fora, de um lado para o outro,
sem foco, com rima, com ou sem sentimento.
Lamento, tormento, piedade, felicidade.
Simples feito a natureza, complexo como a humanidade,
Agudo, fraco, obtuso, disforme,
angelical ou demoníaco,
soberbo, decente, incoerente, desejoso,
voluptuoso e indiferente.
Com as mãos sujas de argila, o copo cheio de tequila,
e aquela menina que tanto desejo, seu beijo.
Ou abordando a tristeza, a sutileza, as formas de beleza,
as luzes, a ribalta.
Por onde começar essa bossa, esse texto,
essa nossa vossa discordância,
pela juventude, tema de infância,
pela infância, pureza e relevância.
Afinal, iniciarei pela instância, ininterrupta discrepância.
VENTANIA
para Antonio Cicero
Iluminar a sombra
e torcer pelo sol
até que venha a chuva,
sapatear pela escuridão
com trovões e ventania,
molhar os dedos
sentir o frio e o arrepio
que é estar.
.
afonso henriques neto
paulo werneck
ANTONIO CICERO
A princípio o Carlos Cardoso é, neste livro a gente vê, muito original, muito estimulante; porque na verdade tem muitas aproximações inesperadas. Ele traz junto a razão, o intelecto, a memória, a imaginação, a emoção; tudo se confunde de repente, e a sonoridade também e a gente não sabe mais, a gente se desloca do mundo convencional em que a gente vive normalmente e entra em um outro mundo que é esse que ele abre com suas palavras. É por isso que eu gosto muito. [...]
Na Pureza do Sacrilégio é um livro extremamente interessante e estimulante. Na verdade, ele realiza bem o que o próprio título promete. O título diz: ‘Na Pureza do sacrilégio’, parece um oximoro, como diz o Silviano Santiago. Num primeiro tempo, a gente pensa nisso e, quando pensa, quanto mais pensa, mais vê o seguinte: que a pureza do sacrilégio pode estar justamente no fato de que a pessoa que comete o sacrilégio não se guia pelos parâmetros convencionais, segundo os quais aquilo que é sagrado é sagrado e o que não é sagrado não é sagrado. Ao contrário, o poeta é capaz de reconhecer outras realidades, outros fenômenos como sagrados que não se entende que são normalmente tidos como tais. De modo que é com toda a pureza que ele é capaz de cometer o que, convencionalmente, se chama de sacrilégio, o que, na verdade, para ele, não. Para ele não é sacrilégio, mas é a verdadeira realização da sua mais pura apreensão do mundo, da sua maneira de se relacionar com o mundo. Eu penso que na realidade, normalmente, nós nos guiamos – isso não tem jeito, tem que ser assim mesmo –, nós nos guiamos num mundo convencional, num mundo cotidiano. Nós temos que nos guiar por uma razão instrumental, utilitária, uma razão, segundo a qual, nós fazemos determinadas coisas tendo em vista determinados objetivos. Cada objeto tem um determinado sentido convencional, também, nesse mundo. Cada pessoa, a gente vê as pessoas, de maneira geral, com a nossa tendência, também, a ver de maneira instrumental, é a razão instrumental. Essa é a maneira utilitária da gente ver quase todas as coisas. A própria linguagem, afinal de contas, é um produto dessa razão crítica que separa as coisas umas das outras de determinadas maneiras convencionais que são importantes para a nossa prática. O que acontece na poesia? O poeta, a poesia, nos abre uma outra maneira de apreender esse mesmo ser e isso se encontra muito claramente aqui em vários poemas do Carlos Cardoso. A gente vê, por exemplo, no poema Embaralhado Pela Neblina: ‘Por mais que tente contê-lo, meu coração bate bravamente. Então refaço o caminho dos ventos, embaralhado pela neblina’. Você refaz embaralhado por uma neblina que não permite a você, na verdade, a apreensão convencional do mundo. Mas essa mesma recusa do convencional, da apreensão utilitária, da apreensão instrumental do mundo, é também o que permite a você ter outra apreensão, que eu diria não ser uma questão de apreensão estética, porque seria reduzir, na verdade, um pouco a coisa. Mas é uma apreensão, eu diria uma apreensão poética do mundo. Então, é isso que se encontra nos poemas de Carlos Cardoso, em vários poemas dele. [...]
Eu vou ler um poema do Carlos Cardoso, ‘É que o Vento Cresce à Medida em que o Vento Sopra’, e vou explicar: ‘Há uma dor mineral em meu corpo, dizem das flores que elas florescem na primavera, e que o vento cresce à medida em que o vento sopra. Há um verbo ilustre em meus versos, e eu amo os poetas e a poesia porque são belos, e as coisas porque são brutais’. Eu acho extraordinário isso porque, na verdade, o brutal parece oposto, à primeira vista, como se fosse o oposto do belo, mas, na verdade, o brutal, de bruto, é o que não é já convencional, o que não é unânime, o que está em outra dimensão. Então, na verdade, você percebe que, ao ver a beleza, ao achar belo o que é brutal, é achar belo exatamente aquilo que não é convencionalmente belo, mas que está ali e que, de certa maneira, se opõe à sua maneira tradicional de apreender. Então, eu achei extraordinário, esse poema, por falar uma verdade profunda, a meu ver.”
agnaldo josé gonçalves
joel rufino
antonio cicero
manuel da costa pinto
carlito azevedo
silviano santiago
SOL DESCALÇO
Afonso Henriques Neto
Quando Carlos Eduardo Cardoso me procurou, em meados de 1993, com um caderno de flashes poéticos e fragmentos de um estranho diário, senti logo a presença, apesar da fatura textual então bastante informe, de uma sensibilidade afeita aos ventos da criação literária. A luta com as palavras (tantas vezes vã, conforme o nosso Drummond), no sentido de combate para arrancar da treva um punhado de luz forte com que iluminar e emprestar sentido à nossa efêmera contigência, era patente em Carlos Eduardo, denunciando uma dolorosa busca de autêntica expressão poética. Lembro de nossas conversas, meu tom algo ‘professoral’ a indicar leituras ao poeta iniciante, a postura tímida do jovem ‘aluno’ no início, e a boa camaradagem que acabou por se estabelecer entre nós.. Das leituras de bons poetas, Carlos Eduardo acabou por encontrar em Dylan Thomas um companheiro inseparável, uma ‘afinidade eletiva’ sem dúvida definitiva. É de se ver, assim, as suas homenagens prestadas ao bardo galês ao longo do livro.
Gosto de muita coisa do livro e cito alguns desses momentos de forte voltagem, com imagens e metáforas de boa qualidade, a revelar, como disse, o poeta: “o ódio esculpido pela flor imóvel deixa queimar o focinho do porco”; “um gigante branco chamado fome, ressoa abrasador”; “ovos celestes cálices feixes do mito, minto / oco vento, memória áspera / raiz do pensamento”; “latente lâmina cravada no coração dos pássaros”. Ou ainda pequenos poemas de boa fatura: “que caia o amanhecer / o raiar do entardecer / que os dias acumulem-se / não na incerteza / mas na pureza do scarilégio”.
Em suma, que este livro inaugural seja, como tudo parece indicar, o início do longo percurso rumo à construção de um corpus poético sempre disposto ao salto mortal, ao esclarecimento das lâmpadas do enigma.
Texto de orelha do livro Sol Descalço (7Letras, 2004)
DEDOS FINOS E MÃOS TRANSPARENTES
Joel Rufino
O Poeta e seu Poema
Vigas e paredes relutam em moldar-se,
Hermética paisagem de pedra areia e cimento.
Hipócrita o poeta xinga sintaxes, chuta as palavras,
E crava estacas profundas na ânsia de tocar o intangível.
Soberbo ele rende-se, dúbio e orgulhoso do nada.
Entre os peladeiros, quando aparece um cobra desconhecido, se emite um juízo frio e definitivo: "Sabe jogar". Também nas tabernas de Lisboa, o melhor que se pode dizer de um cantador é: "É fadista". Nos dois casos não há o juízo negativo: não sabe jogar, não é fadista. Na igualmente elevada arte do verso há um juízo correspondente: "É poeta". É um juízo unívoco. Se vê de cara.
A crítica literária em jornal foi substituída pela resenha, adulatória ou crítica. O leitor aprendeu a distinguir uma da outra. Por outro lado, uma norma desse gênero é que não se resenha livro de inimigo ou livro ruim. Dedos finos e mãos transparentes (RJ, 7 Letras, 119 páginas), segundo livro de Carlos Eduardo Cardoso, nem é de amigo meu e é muito bom.
Nesse momento, as livrarias estão atulhadas de poesia, muitas só têm o mérito da força de expressão. Poesia pouca. Poesia, na conhecida fórmula de M. Jourdain, é P = Prosa + a + b + c, em que a é o metro, b é a ritma e c o ritual das imagens. E Prosa = Poesia - a - b - c. Isso não autoriza ninguém a sair escrevendo poesia. Por que? É que o segredo do negócio não está na estrutura formal, mas no significado que o poema adquire quando usado. Há sessenta anos, Ataulfo Alves compôs Covarde, sei que me podem chamar. Das várias maneiras de dizer isso, escolheu a mais improvável. É um verso camoneano. O estranhamento do verso é que, provavelmente, criou a confraria infinita e anônima dos curtidores de Covarde, sei que me podem chamar. Quem nada tem a significar ou não quer, ou não sabe, que se dedique com mais proveito a outro oficio. Quando um amigo diz: "Você escreve tão bem... " É mau sinal. Duas exceções a essa interdição: escrever poesia como terapia; ou para matar o tédio na prisão. Mas aí estamos fora da literatura.
Poesia, como Carlos Eduardo Cardoso a pratica, é uma forma de desvinculação. Vinculação é uma essencialidade do homem, que sai de uma para entrar em outra. Talvez por isso nada se pareça mais à iluminação budista que a poesia. E talvez os melhores poetas (os da minha preferência) sejam aqueles que a usam para superar uma paixão — o vício/santidade, o crime/virtude, a perda/conquista de um grande amor, o nascimento/ morte e assim por diante.
Uma amostra final de Dedos Finos e Mãos Transparentes:
Misto de Isto e Aquilo
Misto de isto e aquilo,
o homem é quase nada
Soneto de três estrofes,
Sombra que na luz boiava.
Verso que leio, reverso.
Essência dissimulada.
Joel Rufino é professor aposentado da UFRJ. Historiador, escritor e doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ.
DEDOS FINOS E MÃOS TRANSPARENTES
Carlito Azevedo
Já chamava a atenção em Sol descalço, livro de estréia de Carlos Eduardo Cardoso, o ritmo caudaloso das imagens. Assistíamos ali ao surgimento de um poeta que, herdeiro da rica tradição da poesia em pânico (tradição que nunca teve medo do surrealismo, e que, de Murilo Mendes a Afonso Henriques Neto e Roberto Piva, reúne um acervo poético de impressionante vigor) se queria mais visionário que visualista, mais iluminado que iluminista. A beleza alucinatória de seus achados poéticos nascia do “desregramento dos cinco sentidos” recomendado por Rimbaud: daí versos como “farejar o absurdo na calçada do abismo”, “raposa ajoelhada na folha de um acorde”, “nuvem do mito que virá tecer o perfume da derrota” e tantos outros. No texto de apresentação do livro, o próprio Afonso Henrique Neto apontou com precisão a índole metafórica do autor em seu livro inaugural.
Mas quando nós, leitores, pensávamos ter capturado e enquadrado a originalidade poética de Carlos Eduardo, surge um novo livro do autor, Dedos finos e mãos transparentes, no qual a fúria motriz das imagens alucinadas se atenua e dá lugar a um mundo de sutilezas e sensações as mais cotidianas que, sem jamais perder a visceralidade e o gosto pela surpresa, nos tocam por sua extrema simplicidade.
Seja a memória como porta de escape, seja a fusão amorosa dos corpos, seja a presença do acaso como sinal do maravilhoso no banal, seja a amplitude da natureza ou da reclusão dentro do quarto, tudo isso agora nos é oferecido não mais sob o signo da metáfora, mas sim da metamorfose (“vou virar parede perto de ti”), como parece sugerir a presença de Kafka dentro do livro. A transgressão agora é delicada (“esculpir a lua a nanquim”), a “paisagem mais linda” troca o onirismo do sol descalço pela concretude do nu frontal.
Mais do que uma guinada, ou mudança de rumos, trata-se de uma ampliação das possibilidades poéticas. Carlos Eduardo não se quer limitado por esta ou aquela palavra de ordem poética (“eis que a palavra, por ser humana, engana”, diz ele). A beleza de poemas como “Afronto”, de uma objetividade crua, e aquele que dá título ao livro, levemente mágico, revelam um poeta disponível para o sopro da poesia, de onde quer que venha, qualquer que seja sua intensidade. Que a poesia, de fato, sopra onde quer, no relâmpago e na pétala, no sol descalço e nas mãos transparentes.
Texto de orelha do livro Dedos Finos e Mãos Transparentes (7Letras, 2005)
carlito azevedo
silviano santiago
A CONSCIÊNCIA SÍGNICA DE UMA POÉTICA
Aguinaldo José Gonçalves
O livro de poemas Na pureza do sacrilégio de Carlos Eduardo Cardoso, ilustrado com a arte singular de Lena Bergstein, realizado dentro da atmosfera desses tempos de contemporaneidade apresenta-se como uma espécie de fotografia artística dos meandros da poesia. O primeiro aspecto que destacaríamos nesse trabalho poético é que no seu conjunto ele denuncia um estilo que desvela uma visão que entendemos como fundamental para um trabalho artístico. No ir e vir dos poemas a alguns elementos que gostaríamos de destacar como invariantes no procedimento inventivo de Carlos Eduardo. O primeiro deles se revela na consciência do fazer poético em alguns dos textos em que o artista aponta o processo de realização com o próprio dedo, dentre eles, destacamos o primeiro poema do livro, “Frase Primeira” revela um procedimento de bricolagem ou do procedimento de bricolagem dentro de uma busca de recortes do material utilizado no poema e ao mesmo tempo do conteúdo do mundo a ser recortado para a composição do todo. Esse procedimento é retomado em outros poemas do livro em que a questão da invenção poética se manifesta de maneira arguta. Vale a pena atentarmos para as imagens e modo de construção e de modulação do poema “Corpo Vazio”. Leiamos o poema:
Atrair o arvoredoe despi-lo d’alma,
cortar as folhas e o caule bani-lo. O tronco cortá-loAté atingir as raízes, restar apenas o corpo,
vazio.
Nele o elemento determinante da construção poética se revela: esvaziamento lexical de partes dos referentes em busca de uma capitação do essencial, do intangível que consiste no elevado objetivo de um artística consciente. Em “Corpo Vazio” as metonímias se desvelam como procedimento desconstrutivo do que chamaríamos de Língua I para que se proceda à elevação a uma instancia superior, poética da Língua II. Nesse caminho temos ainda que destacar, dentre outros, o poema “O poeta e seu poema”:
Vigas e paredes relutam em moldar-sehermética paisagem de pedra areia e cimento.
Hipócrita o poeta xinga sintaxes, chutas as palavras,e crava estacas profundas na ânsia de tocar o intangível.
Soberbo dele rende-se, dúbio e orgulhoso do nada.
No conjunto dos poemas que compõe o Na pureza do sacrilégio a maioria traz à baila algumas questões que são próprias da contemporaneidade no que diz respeito aos seus procedimentos que mesclam gêneros, assinalando estruturas narrativas e até mesmo o dialogo, questões semânticas urbanas as marcas de cidades invisíveis, mas ao mesmo tempo concretas para lembrar o grande narrador Italo Calvino. Os poemas em geral do livro trabalham questões de semantização truncados por um jeito de compor e de olhar para o mundo que ao mesmo tempo olha o poeta e o ilumina agora lembrando as iluminações de Georges Didi-Huberman e mesmo em alguns grandes poemas de Carlos Drummond de Andrade presentes em a A Rosa do Povo. Convidados especiais elevam a obra e acentuam a visão do artista, pensamos aqui na dedicatória a Antonio Cícero num dos poemas do livro. E essas posições acima levantadas são catalisadas dentro de alguns núcleos metalinguísticos do livro como é o caso do poema “O poeta e seu poema” acima transcrito. Nele alguns procedimentos já comentado voltam a se manifestar de maneira expressiva atingindo a excelência poética. Os processos de composição, realização e motivação se amalgamam conseguindo apreender nas imagens os polos decisivos do ato de invenção do poema. Carlos Eduardo Cardoso como se articulasse paradigmaticamente as pilastras necessárias para que um poema seja um poema recupera de maneira profunda as artimanhas da bricolagem no seu sentido estrito dentro das considerações de Claude Lévi-Strauss. O objetivo artístico composto por “pedaços”, “filamentos”, “nuanças sintáticas” e “blocos semânticos” como se fora uma material de construção com visibilidade de seus núcleos e de seus movimentos morfossintáticos. Há passagens que apontam mesmo que inconscientemente, indicam pontos de integração entre a tradição e a modernidade por meio de signos incontestavelmente pertinentes. Nesse poema, a palavra hipócritas remete ao leitor de poesia ao mestre da modernidade Charles Baudelaire no seu ontológico poema “Ao Leitor” que abre o livro Flores do Mal e ao mesmo tempo traz como marca da verticalidade contemporânea com as vociferações brutas ao verso e a sintaxe tradicionais. O poema se encerra com a palavra “nada” que mais uma vez no remete ao esvaziamento lexical herdado do simbolismo Frances e da poesia moderna do século XX. Esses elementos nos fazem crer que um novo POETA se insere na poesia brasileira adentrando o espaço poético pelo portão principal.
aguinaldo josé gonçalves
Crédito obrigatório:
Bel Pedrosa
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PAULO WERNECK
É muito interessante para um jornalista especializado em livros, como eu, observar o surgimento de um novo poeta. Não é todo dia que isso acontece e não é todo dia que isso acontece como está acontecendo com Carlos Cardoso, que é um cara que ganhou já em seu terceiro livro o apoio de dois críticos importantes, que são o Antonio Cicero e o Silviano Santiago. Eu acho que o Carlos Cardoso trabalha numa linha muito pessoal; ele tem uma poesia singular, uma poesia que se destaca daquela que está sendo produzida no Brasil hoje; tem um tom diferente, tem uma preocupação diferente, tem um substrato diferente de onde ele vai buscar as suas imagens, a sua poética, e isso interessa muito. É o surgimento de uma nova paisagem poética no país! Não é todo dia que vemos surgir um poeta com essa força, um poeta que tem esse respaldo crítico e por isso eu estou aqui para observar o caminho do Carlos Cardoso na poesia brasileira.
Salta aos olhos neste livro do Carlos Cardoso, Na Pureza do Sacrilégio, a construção muito meditada que ele faz desse livro: não só a construção dos poemas, a estrutura do livro, mas também a construção dos versos me parece algo que tem um racionalismo forte, por isso talvez evoque a poesia de João Cabral de Melo Neto, como já foi mencionado no debate e também pelo texto do Silviano Santiago. Esse diálogo com a arte que ele faz especificamente com a Lena Bergstein, em que os poemas provocam ilustrações, provocam pinturas, obras de arte, e que passam a integrar a estrutura poética do livro é interessante; é também algo que dialoga, de maneira mais enviesada, com o João Cabral de Melo Neto, que era um poeta muito preocupado com as artes plásticas e que tinha também a preocupação de produzir edições artesanais com obras de artistas amigos. É uma conversa rara que na poesia brasileira não é todo dia também que acontece.
Seria injusto com o Carlos Cardoso ou com o Fernando Pessoa fazer essa comparação, esse paralelo tão forte porque o que eu vejo no Carlos Cardoso são duas coisas: tem um ímpeto de singularidade, um desejo de ter uma voz original – e ele tem – do ponto de vista em que ele não está reproduzindo uma poética que a gente vê na poesia contemporânea. Ele adota uma voz muito singular e, ao mesmo tempo, essa voz dialoga com a tradição, dialoga com a poesia que ele leu na vida inteira e dialoga até de maneira inesperada por ele mesmo e que, por isso, nos traz sugestões. Eu acho que ele tem esse pêndulo entre uma voz muito singular na poesia contemporânea e um diálogo com a tradição que, por vezes, é consciente, por vezes, é inconsciente e que cabe a nós, jornalistas, críticos, desnudar – para usar outra imagem que o Carlos Cardoso utiliza bastante nos poemas dele.”
MANUEL DA COSTA PINTO
Eu conheci Carlos Cardoso a partir do convite que eu recebi para fazer a mesa do lançamento do livro Na Pureza do Sacrilégio, e foi uma grata surpresa conhecer um pouco dos bastidores da criação literária, saber o processo que levou ao livro que eu já havia lido previamente; então foi muito interessante ver a todas as nuances de significado, todas as experiências que se decantaram na página impressa e que não estão no livro, mas que enriquecem também a leitura do livro.
É um livro que, na minha leitura, tem três partes, embora não esteja dividido assim, você tem uma lenta transição de uma parte para outra, de uma primeira para uma segunda parte, de um olhar mais lírico para um olhar mais objetivo e mais hermético até atingir uma síntese que faz do livro um conjunto de poemas que dialogam entre si. Tem uma espécie de linha narrativa que conduz a um olhar de indignação diante do mundo e tentativa de reconciliação com o mundo a partir de uma visada, de uma perspectiva que é questionadora, mas ao mesmo tempo tentando superar as contradições.
A introdução ao livro feita pelo grande escritor e crítico literário Silviano Santiago faz algumas aproximações a grandes nomes da poesia em língua portuguesa, como João Cabral de Melo Neto e Fernando Pessoa. Acho que a gente tem vários poemas que são ‘cabralinos’: ‘Cães’ por exemplo, é um poema cabralino; ‘Faca Cega’ também é um poema que tem uma objetividade meio pontiaguda, meio cheio de arestas e um andamento muito econômico, rápido, direto, com uma batida seca; tem uma secura que é própria do objeto que está tratando o poema. Mas por outro lado existe uma coisa meio imagética, sensacionista, que eu acho que para mim soa mais próximo do Fernando Pessoa. Acho que se eu tivesse que colocar em proximidade o Carlos Cardoso de algum poeta da língua portuguesa dentre aqueles evocados pelo Silviano Santiago, seria ao Fernando Pessoa, sendo que o Fernando Pessoa são vários poetas, o Fernando Pessoa é várias pessoas porque ele tinha os heterônimos. Então, eu acho que tem os poemas sensacionistas do Álvaro de Campos, tem algo de uma linguagem, às vezes, hermética, difícil, um pouco quase que alucinada, que eu enxergo, que eu leio reverberando na poesia do Carlos Cardoso. É um poeta bastante singular, autônomo em si, com uma obra bastante autônoma. Você pode identificar aqui e ali semelhanças com João Cabral de Melo Neto, com Fernando Pessoa ou com Cecília Meireles que é uma autora que o Silviano Santiago não menciona, mas que eu aproximaria do Carlos Cardoso. Você pode encontrar aqui e ali intersecções, pontos de contato, mas a obra de um poeta quando ele já criou uma dicção própria ela é independente, ela é autônoma dessas referências que, no entanto, estão ali.
SILVIANO SANTIAGO
A nova coleção de poemas de Carlos Cardoso se anuncia por um oximoro – Na Pureza do Sacrilégio –, figura de retórica que resplandece iluminada pelo belo desenho da artista plástica Lena Bergstein. De imediato, o leitor futuro do livro é alertado pra o ensaio clássico de Roman Jakobson sobre o poema ‘Ulisses’, de Fernando Pessoa. Seu verso inicial é belo e definitivo exemplo de oximoro: ‘O mito é o nada que é tudo’.
O oximoro pessoano voltou a significar na capa do novo livro de Carlos Cardoso: a virtude daquilo que não tem malícia nem pecado, a pureza, se combina à maldade e à profanação, o sacrilégio.
Mas de que modo – em poesia – o mero jogo entre termos opostos pode reforçar a expressão? Há que dar um salto da retórica da linguagem para a análise do modo como o uso do oximoro se expressa na arte poética e a valoriza, tendo como exemplos Fernando Pessoa e Carlos Cardoso.
Deparamo-nos com a epígrafe tomada ao poeta mexicano Octavio Paz. Serve para alertar o leitor das intenções do poeta brasileiro. Paz nos diz que, na criação, a palavra não serve para vestir de modo luxuoso e luxurioso. O uso abusivo das figuras de retórica parece ser um contrassenso na escrita poética defendida por Octávio Paz e – acrescento – por Carlos Cardoso. Na criação, a palavra não veste, ela desnuda – afirma o mexicano e o brasileiro reafirma. Ainda não sendo, a palavra mostra que é pelo desnudamento, pelo signo da coisa, e não pelo vestir, revestir, adornar, enfeitar a coisa. Se o mito é o nada que é tudo, o poema é a pureza do sacrilégio. A escrita poética desnuda a pureza pelo sacrilégio para purifica-la ainda mais; desnuda o sacrilégio pela pureza para conspurca-lo ainda mais. Extremos extremados aparentemente não se tocam e se tocam em confusão, em simbiose poética.
O deslizamento do formal ao semântico e do semântico ao formal não é apenas uma das graças do notável poema de Fernando Pessoa, como Jakobson demonstrou genialmente; é também o movimento que articula, em várias cadeias estruturantes, os sucessivos poemas de Carlos Cardoso. Como Pessoa nos poemas do livro Mensagem, Carlos é um “poeta da estruturação”, que abole todos os golpes da “incerteza”.
A força do oximoro é tão potente no universo de Carlos Cardoso que o leitor pode se valer da figura de retórica como chave para uma compreensão global de todos os poemas de Na Pureza do Sacrilégio. No poema final da coleção os dias – isto é, as ocupações do poeta com a palavra – se acumulam entre a queda dos amanheceres e o raiar dos entardeceres, mas não se acumulam na incerteza do vaivém entre termos opostos. Acumulam-se no reforço da viagem cotidiana entre os amanheceres em queda e os entardeceres em brilho, que vêm previstos na capa pelo oximoro e são ratificados por Octavio Paz em termos de criação poética.
Torna-se necessário configurar o espaço em que os poemas são escritos e inscritos, já que o oximoro Na Pureza do Sacrilégio denota como limitada, intervalar e crepuscular a área da criação poética para Carlos Cardoso. Os poemas circulam todos no intervalo aberto entre termos extremos. São contextualizados de modo formal e reforçados de modo semântico por um termo e pelo seu oposto e contraditório. Dessa maneira, constituem um espaço original de produção poética onde os temas favoritos do poeta são repassados no seu interior, isto é, dentro dum edifício arquitetônico onde alicerce e cumeeira não se movem e as paredes, se se encontrarem, são poesia. Arquitetonicamente falando, tudo é insistentemente fixo para que a movimentação interna seja plena.
Em viagem de ida e volta, movem-se os temas, sempre (de)limitados pela organização e a arquitetura do oximoro. O poema perambula, mas tudo permanece intacto – eis a lição de poesia.
A principal qualidade da retórica de Carlos – insisto – é o desnudamento. Na verdade, verso algum de poema que desnuda é inteiro. O poeta toma uma árvore no campo, como se pudesse toma-la com a facilidade como se toma uma palavra da língua portuguesa, como se toma um signo linguístico. Logo se desilude, porque tem de trabalhar o poema entre oximoros, entre o real e sua representação, tem necessariamente de despir o arvoredo d’alma, tem em seguida de cortar as folhas, banir o caule, cortar o tronco até atingir as raízes e então descobrir que resta de papel um corpo, no entanto vazio.
Nos poemas de Carlos as sensações de fundo ético sempre aproximam a experiência de vida do sabor religioso. O quietismo é de praxe nas emoções previsíveis do poeta a ocupar o espaço intervalar.
A pureza dos sentimentos – ou a sinceridade política na confissão do poeta entre oximoros – é sempre corrompida pelo ultraje da vida miserável. Seriam pessimistas os poemas intervalares, da fenda, em que vivem e se emocionam o poeta e seu leitor? Como é o “sentir o frio e o arrepio / que é estar”? A denúncia social tomou conta do espaço subjetivo, poético intervalar e quer “farejar o absurdo na calçada do abismo”, enquanto – já na clave do sagrado onde o sacrilégio do viver, do estar, passou a corromper a pureza do escrever – “o ódio / esculpido em flor imóvel / deixa queimar o focinho do porco”.
No sortilégio da pureza – se me permitem a inversão nos termos ao final desta apresentação – o oximoro passa a residir num “pavilhão imaginário / a fatiar a carne em espírito”. Nele moral, por sua vez, “Homens / mulheres a implorarem perdão”.
Camaleão
[AUDIO BOOK]
42 poemas do livro Na Pureza do Sacrilégio
recitados pelo autor.
Faixa bônus: “Engenheiro-poeta”.
Ouça a faixa 15:
Luz da Cidade, 2017
Coleção Poesia Falada Vol. 23
www.luzdacidade.com.br
eu serei noite e serei dia – 1'04
camaleão – 1'35
a poesia de carlos cardoso – 9'45
o poema, o começo – 1'46